quarta-feira, 13 de julho de 2011

Nós lê os livro/Nós não lemos os livros

O livro didático (destinado, principalmente, à Educação de Jovens e Adultos) Por uma vida melhor, publicado pela editora Global e aprovado pelo MEC, vem causando uma série de polêmicas em relação ao ensino de Língua Portuguesa. E isso é ótimo! Tenho acompanhado as discussões desde o surgimento dos debates e lido opiniões interessantíssimas (inclusive aqui na Gazeta), tanto de pessoas que apoiam a postura do MEC, quanto daquelas que a condenam. Porém, alguns julgamentos me deixaram, pessoal e intelectualmente, muito preocupado: ou por causa do total desconhecimento sobre o assunto da parte de quem os expressou, ou porque são tendenciosos.

Aos primeiros, não há por que condená-los. Quantas vezes eu, enquanto estudante, não defendi meu ponto de vista, na melhor das boas intenções, apenas para depois perceber que estava entendendo as coisas de um ponto de vista equivocado? O que fazer? Reconhecer a própria ignorância, dando o braço a torcer: “Ih! realmente, eu tinha pensado algo bem diferente. Reconheço meu erro e…”, usando as palavrinhas mágicas do conhecimento: “… vou buscar saber mais sobre isso”. A menos, é claro, que estejamos convictos de que a nossa opinião é imutável, mesmo diante de evidências nos mostrando o contrário.

No caso do famigerado livro, bastaria explicar alguns pontos mal entendidos para ver que grande parte dos impropérios lançados contra ele não passa de engano. O primeiro – e mais importante – esclarecimento é o que trata da distinção entre fala e escrita. É um aspecto tão relevante, que eu levaria páginas e mais páginas para explicar apenas o básico, e esta não é minha intenção. Basta, por agora, saber que escrever e falar são coisas distintas, pois atendem a objetivos diferentes. No Rio Grande do Sul, são poucos os que conjugam, na fala, os verbos na segunda pessoa do singular, às vezes mesmo em situações formais. Dizemos “tu fala”, “tu vai”, “tu leu”. Repararam na forma verbal que eu usei – “dizemos”?

Pois, é. Nós falamos assim, mas sabemos que, na escrita formal, gramaticalmente correta, devemos conjugar o verbo na segunda pessoa, ou usar o pronome de tratamento “você” e a conjugação da terceira pessoa, que é bem mais fácil (e estilisticamente mais bonita, diga-se). O livro Por uma vida melhor fala exatamente isso! Que falar e escrever são diferentes e, NA FALA, as variações são permitidas em determinadas situações. Isso está escrito de uma maneira tão evidente, que o primeiro capítulo se chama justamente “Escrever é diferente de falar”! Em nenhum momento está dito que é permitido escrever “nós pega os peixe”, ou qualquer outra deturpação da norma culta. O capítulo polêmico, ou o livro inteiro, estão na internet, eu o li, e desafio qualquer um a me apontar nele onde se diz o contrário. Duvidam? Um dos exercícios desmascara toda a má fama da publicação, página 25, exercício 4: “Nestas frases, as palavras destacadas estão escritas como, geralmente, são pronunciadas. Reescreva-as de acordo com as regras de ortografia”.

Acho que estamos indo bem, já podemos ver que a proclamada bomba atômica contra a Língua Portuguesa não é nem um estalinho. Agora, vamos entrar na questão ideológico-política. Estão acusando o Ministério da Educação e o governo de situação de tentar implantar uma nova língua no país (fazendo referência à Novafala [Newspeak] do romance 1984, de George Orwell). A ideia é absurda, visto não se tratar de nenhuma mudança, muito menos, como mostrei, na fala. Penso que o estopim de toda a polêmica tenha sido a tomada de consciência – por parte de algum jornalista mal-intencionado ou, na melhor das hipóteses, desinformado – sobre um campo de estudos existente desde a segunda metade do século passado, e que ganhou força e representatividade no Brasil na década de 1980. Falo da sociolinguística, ramo da linguística, que, dentre outras coisas, estuda os dialetos de uma língua, isto é, as variações da fala presentes em diferentes regiões ou classes sociais. O tal sujeito deve ter ficado abismado em saber, por exemplo, que na escola se discute a existência de diferenças entre a fala coloquial e a fala culta! Ou que estão ensinando aos nossos alunos a obviedade mais óbvia (sic): existem determinadas pessoas, de determinados grupos sociais (muitos alunos talvez pertençam a um deles) que fala “nós pega o peixe”! Isso não parece muito mais aceitável do que negar a existência de variações da fala e dizer que apenas uma, e somente aquela, existe? Alguns vão replicar: “Mas o objetivo da escola não é ensinar a escrever nessa variante.” E não é mesmo. Tanto não é, que em nenhum lugar está dito que deveria ser.

Mas os oportunistas aproveitaram bem a situação para fazer o que sabem fazer de melhor: politicagem, em vez de política, chegando ao cúmulo de acusar o governo petista de tachar de preconceituosos aqueles a favor da norma culta. Mais uma vez a ignorância reina. Uso “ignorância” sem querer ofender ninguém, mas no sentido de “ignorar” certos assuntos. A crítica ao governo atual, neste caso, é de tal modo sem fundamento quanto aquela do livro. Não quero defender o PT, a crítica é infundada mesmo, porque basta ler os Planos Curriculares Nacionais aprovados em 1997 (pleno governo FHC) para encontrar o seguinte trecho, na página 26 do segundo livro: “A Língua Portuguesa, no Brasil, possui muitas variedades dialetais. Identificam-se geográfica e socialmente as pessoas pela forma como falam. Mas há muitos preconceitos decorrentes do valor social relativo que é atribuído aos diferentes modos de falar: é muito comum se considerarem as variedades linguísticas de menor prestígio como inferiores ou erradas.” E depois o texto segue falando sobre o preconceito, sobre o papel da escola, sobre considerar os contextos, etc. Ou seja: falar sobre preconceito linguístico não é coisa de governo petista!

Agora, para concluir, um apelo pessoal, de minha parte e de muitos outros que gostam de ler, de pensar, de participar de bons debates e discussões porque acreditam que eles enriquecem o conhecimento da nossa sociedade: não se sintam acanhados por emitirem opiniões equivocadas por desconhecimento; não se melindrem por falarem uma bobagem, só porque ignoravam certos assuntos; errar é tão humano que chega a ser necessário para aprender. Criticar livros que não leu esse é que é o pecado; e nos casos em que se declara publicamente que não o lerá, apesar de continuar criticando, fico constrangido por tamanha vergonha.