domingo, 30 de outubro de 2011

Devaneio - Orlas, bordas e molduras.

As vezes me pergunto da função da televisão. Mas sem partir da televisão como um conjunto de atividades “super-estruturais” que vão desde os estúdios de jornalismo e arte cinematográfica; como indústria da cultura. Parto do próprio aparelho. Essa caixa luminosa que ocupa algum volume em uma repartição de nossas casas.

O que é a TV além de um aparelho que representa imagens? Será que ela tem uma função tão útil que mereça todos os adornos que fazemos em torno dela. Que diferencia a TV de um oratório (móvel onde ficavam as imagens de religiosas em outras épocas deste Brasil)? Na minha casa por exemplo, há um móvel apenas para sustentar a TV. Ou seria ela mais um quadro como tantos outros que temos na casa? É bem sabido que na Alemanha nazista as repartições públicas deviam ter retratos do líder do Partido e da Alemanha: Adolf Hitler. Não seria a TV, o adorno pós-moderno que nos lembra quem são nossos lideres, salvadores, nobres, generais entre outros que merecem nossa “dobra”?

Até vejo os defensores dos cidadãos Kane e suas respectivas esposas apontando para o fato de que usar uma TV para esta “utilidade” que pode ser feita com a simplicidade de um quadro ou de um oratório. Ora, diriam eles: “Somos práticos, Diego. Será que essa tua ‘torpeza comunista’ não lhe permite ver que se fossemos uma sociedade que precisasse de uma imagem de um ‘líder’, de um ‘modelo’, seriamos ao menos utilitários: ponha-se um quadro ou um oratório de uma vez. A TV foi criada para outras utilidades...”. Creio que ao final, concluiriam uns: “A TV se presta para comunicar pessoas”. Acho isso simplista, boçal, “plebeu” como prefeririam alguns. Por de traz dessa visão utilitária do “aparelho de recepção de imagem televisionada” (doravante referido apenas como TV), esconde-se uma completa incapacidade de questionamento. Partem de uma práxis para deduzir que a TV tem utilidade. “Usa-se a TV, portanto a própria tem utilidade”. Ardiloso, porem simplista. A própria conclusão de que a TV se presta a comunicação entre pessoas, termina por pecar justamente contra o critério que adoram. As pessoas comunicam-se sem TV desde a muito tempo. E das mais diferentes formas, com os mais diferentes resultados. Comunicar-se é uma palavra genérica de mais para definir qualquer comportamento humano. A religião é comunicação. A escrita é... A ordem marcial... A justiça... A verdade... A filosofia... Que importa de tão próprio a TV, em seu ato de comunicar, ao ponto de tornar-se um bem de consumo tão básico quanto uma geladeira (que conserva alimentos) ou um forno a gás? Por que fazemos dela algo tão essencial a nossas casas quanto os bens de higiene ou de alimentação?

Para trazer entretenimento a nossas casas? Reforçar nossos estados de alma? Mas não era o que faziam os oratórios ou os quadros de lideres? Reforçar nossa lembrança de que há “alguém olhando por nós e para nós”?

Questiono isso porque de repente me percebo como se jogasse um jogo com esse ser: a TV. Olho-a... Ela mostra-me meus ídolos... Meus lideres... Meus sacerdotes... Médicos... Irmãos... Pensadores... Minhas esperanças... Minhas verdades... Meus vizinhos... Minhas dores... Os embaralha. E de novo... Imagens de pessoas, de identidades, lideres, dores, minhas ou não... E novamente, os embaralha. Consumo, verdade, satisfação, líder, religião, sexo... Embaralha. Drogas, insolência, orgulho, verdade, vingança, violência, satisfação... Os embaralha. Um jogo mudo. No qual eu não tenho reação, mas recebo cartas. Apenas vejo. No outro dia, pessoas conversam avidamente sobre as coisas que a TV os mostra. Há qualquer coisa de carente na conversa. As pessoas se lançam sobre esses assuntos de uma forma simples. Conversar sobre o que a TV diz é normal! Mas por que seria tão normal falar do que a TV diz? Por que é comum a todos? Mas as pessoas tem um sério problema de falar de algumas coisas que são comuns. E o mais estranho, não falam sobre outras formas de arte. Nem tudo que é comunicado a todos por ser um fato natural comum ou por ser representado para todos, é conversado. Por que falar do que a TV diz? Não seria por querer responder a TV?

Fenomenal essa máquina de embaralhar. Instigadora da procura pela verdade em um hall de mentiras que ela mesmo não discerne, enquanto deixa as pessoas havidas por uma oportunidade de réplica. A TV foi a pool de valores do século XX. Uma enorme bricolagem sem sentido que instigava seus participantes a ver sentido em si mesma. As pessoas articularam suas próprias verdades em torno do que diz a TV. Não me surpreenda que usem a TV para acobertar suas dores (como as famílias que, para não se enfrentarem, pacificam-se na frente da TV). Me surpreende é que não acobertem a TV com outra coisa. Se fala da TV, por bem ou por mal. Alguém que não fala da TV é “alienado”. “Em que mundo vive esse que não vê TV?” Por outro lado, pessoas compõem os mais diversos e perigosos entendimentos sobre as imagens que aparecem na TV. Algumas tornam-se diferentes esquemas daquilo que meramente vêem na TV. Apontam seus lideres e seus medos entre figuras que só aparecem na TV.

Eis aí um ciclo com resultados interessantes. A TV semeia proposições embaralhadas. As pessoas a digerem de forma mais ou menos orientada que puderem. E cá estou com um punhado de ET’s do mundo da TV que apontam seus lideres entre mesclas de sofrimento e prazer. A TV é a representação do céu antigo que dizia aos homens o que fazer, com a vantagem de ser “mais portátil que céu”, além de poder ser socialmente definida (como os quadros e imagens religiosas). A união das pessoas com a TV, nascem os lideres, as estrelas, as verdades e tudo que é. A TV, assim como o oratório e o quadro do líder, é a borda do universo, neste mundo de massas. Ela diz o que somos. Passível de ser colocada em casa, como um quadro ou um oratório; superando estes com sua capacidade de variar. E instigando nos seus ouvintes a carência por uma oportunidade de resposta (assim como o céu da antiguidade), obriga-os a ruminar o que já mais poderão responder a TV.