segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Perdido no tempo

... Era jovem e promissor. Tinha um bom coração e uma pasta cheia de boas ideias, estudos e argumentos. Já não podia discernir quantas vezes havia passado pela porta daquele elevador. Talvez se pudesse contar, poderia ter certeza de que já não era jovem, de que seu cansaço era proveniente da idade e de um merecido descanso que jamais o deram. Mas sempre que entrava ali, sua mente falhava... Novamente... os olhos piscavam, levava dois dedos à cabeça, fechava os olhos com força... e o desconforto ia embora. Era o cansaço que o corroia. Sentia-se entorpecido e disperso. Afinal aqueles que nunca dormem, jamais acordam.

É interessante como não medimos as ideias na unidade de tempo que levamos para dizê-las por completo em nossas mentes. De lá, um gigantesco observatório, podemos ver todo o trabalho de nossas mentes e todas as relações que esses trabalhos mantêm entre si. Mas, por outro lado, não é possível desassociar essa tarefa do tempo. Por mais rápida que seja, e que seja tão rápida para fugir aos nossos olhos de vê-la funcionar, a mente trabalha em unidades de tempo. Por isso quem jamais tem tempo, jamais tem novas ideias. A mente fica estagnada, incapaz de fluir, muito embora várias das mentes estagnadas não sofram desse mal. Por isso dizemos que mentes que optam por não renovar seu acervo de ideias estão paradas em tempos obsoletos e passados. Enquanto o elevador fazia um movimento qualquer, ele tirava um minuto de sua rotina para descansar e pensar nas pequenas coisas que faziam esse inferno valer a pena. Então ele, como quem segue um roteiro, visita as partições do tempo em sua memória e do espaço em seu cérebro que guardam aquele precioso sorriso daquela linda mulher. Esposa... Quase não se lembra de como ela é exatamente, e se surpreende sempre que a lembrava. Como rever alguém familiar, mas que não tem lugar em sua memória. De como aquele doce sorriso compartilha um rosto com aqueles cabelos que já não se pode dizer se são escuros ou claros. Afinal, quem não tem a oportunidade de dedicar tempo às coisas importantes não pode lembrar muito bem do que lhe é importante. Mas ele é esforçado e consegue lembrar de sua esposa... ah sim, e de seus filhos também.

Então, o elevador para, as portas se abrem e ele adentra no corredor do andar de seu escritório. Um luxuoso andar, com o piso feito de mármore e janelas altas e panorâmicas. De lá podia ver tudo aquilo que não tinha valor algum. Um verdadeiro templo do poder, pois os reis daquele palácio podiam tanto que gastavam enormes somas com coisas que carecem de qualquer importância. Ele atravessa o corredor numa marcha que fez tantas vezes que se tornou irritante fazê-la. E era tão repetitiva que jurava havê-la feito antes de chegar em casa na noite anterior.

Então, ele abre a porta de seu escritório e atravessa a sala de espera onde pessoas, que não se sabe dizer quem são, o esperam com os mesmos problemas típicos que ele sabe que terá de resolver. Ele já não sabe notá-las, não sabe dizer no que elas se fazem diferentes umas das outras ou no que elas compartilham de semelhante com ele. Logo nota que já não sabe diferenciar se estiveram mesmo ali no dia anterior, esboçando assim uma conclusão, que logo descarta:

- Não, isso é absurdo. - diz suspirando e organizando os formulários sobre a mesa.

Seja lá o que estivesse pensando, já não era importante. A questão agora era o trabalho. Então ele começava a arrumar aquela mesa e a separar o trabalho que não havia terminado no dia anterior. Certamente era muito estranho e ruminava consigo mesmo: “Que trabalho é tão grande ao ponto de jamais estar acabado? Ou perdi minha capacidade em meu ofício e já não sei distinguir que trabalho não está acabado ao ponto de ver todos meus trabalhos como uma coisa só?” Então ele colocava aquela mesa em ordem e separava os formulários e documentos incompletos. Esses faria enquanto almoçava, e os faria com tamanha pressa que estariam prontos para serem protocolados antes do horário de almoço acabar. Então começava as entrevistas. E novamente teve aquela sensação de que não podia discernir entre as pessoas que se sentavam a sua frente para compartilhar com ele os problemas que os atormentavam, e para os quais esperavam respostas vindas dele. Chegava a ser irritante. Parecia até que a mesma pessoa, sem rosto, saia para dar-lhe folga aos ouvidos para voltar alguns minutos depois. Certamente era uma sensação inoportuna e o fazia perder a calma com os clientes, como se já houvesse dito a mesma coisa com o mesmo cliente nos últimos dias em que esteve trabalhando.

Essa estranha entrevista que se repetia a manhã toda o tirava do sério. Cada interrupção era extremamente desinteressante, inodoras, incolores e insípidas. Antes fossem interrupções sérias, antes fossem interrupções que de tão ruins ele teria a certeza de que nada seria o mesmo após as mesmas. Antes tivesse colocado a mão por debaixo da saia daquela colega e feito algo de errado. Antes fossem interrupções horrendas. Interrupção drástica de tudo. Fim dessa insuportável história sem fim. Daí dava-se conta de que aquilo não era algo que pudesse parar, pois não podia parar. Não podia tolerar a interrupção de si, pois ainda havia muito por fazer... Logo notava que essas interrupções eram completamente improdutivas e que por mais que almejassem o fim do trabalho, não contribuíam para tal objetivo. Então retomava o trabalho, certo de que agora terminaria todo o expediente da manhã, mas recorreria a tais interrupções de novo.

Após o expediente da manhã, e um pequeno atraso no início de seu almoço, ele começa a almoçar e a trabalhar no que ficara incompleto na noite anterior. O almoço em si toma a menor parte desse tempo, de forma que ele tem de comer algo rápido e simples. E a hora do almoço, que deveria durar uma hora, passa a ser de cinco minutos. Então ele termina o que não havia terminado na noite anterior.

A tarde era mais simples. Por uma questão de destino, ou de sorte, o escritório era menos frequentado nesse período. Mas ainda assim fazia consultas e atendimentos. Não saia do escritório nem para as audiências, pois outro advogado se encarregava de fazê-las. Os clientes que entravam em seu escritório, à tarde, não eram muito diferentes daquele cliente genérico que o tomava a paciência de manhã. No entanto, com maiores intervalos entre as entrevistas de tarde, sua paciência não ficava tão desgastada. Talvez por isso, à tarde, o trabalho parecesse mais produtivo. Tinha mais tempo para pensar sobre as questões que estudava. Eis que em algum momento, o cliente lhe narrava algum problema que lhe deixava apreensivo e inquieto. Em suma podia ser resumido na falta de atenção de algum burocrata. Alguém não estava fazendo o trabalho de forma adequada. Talvez o advogado anterior, talvez algum funcionário público descuidado. Dada a situação só podia concluir pela impotência do sistema e de como deveria ser mudado para que não sofresse de tal problema. Burocratas mais probos, mais estudados e menos negligentes. E nada o deixava tão curioso quanto as tais falhas. Afinal, se o sistema é cheio de vísceras, órgãos internos que tem por objetivo impedir erros, como era possível uma falha dessas? Então era ali que percebia que tinha algo de comum com seu cliente. O que devia lhe facilitar a vida era o que lhe sepultava a liberdade. Um sistema burocrático que tem tantas instâncias quanto falhas só pode servir à reprodução de um mesmo problema.

Era neste momento do dia que sentia compaixão por seus clientes. Era ali que sentia que tinha algo de comum com aquelas pessoas. Muito embora continuasse inapto para distingui-las. Mas não era algo que realmente fizesse diferença no trabalho. Servia-lhe de motivador, mas sabia que teria de redigir todos aqueles documentos, estivesse motivado ou não.

Ao final da tarde, geralmente, era requisitado por algum sócio de peso do escritório para analisar algum caso de relevância. Então ele passava essas horas do final do dia lendo e pesquisando um assunto que julgava banal e desinteressante. Essas horas finais eram maçantes, considerando que geralmente era uma questão delicada que exigia uma resposta até o fim do dia. E então quando tinha a resposta, momento que pertencia a sua rotina noturna, ele começava a redação e a organização dos documentos necessários para superar o problema. Então, já exausto do trabalho, se revoltava. Colocava os papeis em uma pilha separada. Argumentava para si mesmo, a fim de não se sentir culpado, que o expediente no juízo já havia terminado e que nada iria ser feito antes do dia seguinte. Então colocava algumas cópias na pasta, tomava o paletó em mãos e vestia-o. Saia da sala e dirigia-se ao elevador. A essa altura o prédio já estava vazio. Ele era o último a sair e os corredores estavam tão serenos como quando chegou. Atravessava o corredor desfazendo a marcha que fez de manhã. Entrava no elevador, e mesmo sabendo que algo daquilo iria se repetir, estava satisfeito. Alimentava a doce ilusão de que o trabalho lhe comprava tempo e de que se continuasse assim seria feliz e estaria descansando logo.

Era jovem e promissor. Tinha um bom coração e uma pasta cheia de boas ideias, estudos e argumentos. Já não podia discernir quantas vezes havia passado pela porta daquele elevador. Talvez se pudesse contar, poderia ter certeza de que já não era jovem, de que seu cansaço era proveniente da idade e de um merecido descanso que jamais o deram. Mas sempre que entrava ali, sua mente falhava... Novamente... os olhos piscavam, levava dois dedos à cabeça, fechava os olhos com força... e o desconforto ia embora. Era o cansaço que o corroia. Sentia-se entorpecido e disperso. Afinal aqueles que nunca dormem, jamais acordam...