quarta-feira, 30 de março de 2011

A critica ao capitalismo e a proposta mutualista I: a ficção do fruto

Pretendo trabalhar nestes pequenos artigos de blog que chamarei de “A critica ao capitalismo e a proposta mutualista” as diferenças que existem entre os modelos de produção capitalista e mutualista. O objetivo é entender as diferenças entre os dois modelos bem como as conseqüências dessas diferenças, que por vezes começam com detalhes pontuais e progridem ao absurdo do imprevisível.

O ponto critico e fundamental que difere o mutualismo do capitalismo é a forma de “propriedade privada” que ambos modelos usam. Acontece que os mutualistas não classificam, de imediato, a propriedade privada como algo que só pode existir em uma sociedade capitalista, ou como se a propriedade privada desaguasse necessariamente em uma sociedade capitalista. Se considerarmos propriedade privada, como o modelo de propriedade típico de uma sociedade capitalista, ou seja, aquele modelo de propriedade proposto pelos liberais e pelos iluministas, aí sim, podemos dizer que em mutualismo não há propriedade privada. No entanto, o primeiro problema de tratar este assunto é que a maioria dos “tolos” sempre se ateve ao “sabor das palavras”. Ou seja, algumas pessoas, sejam anarquistas, socialistas, liberais, preferem ler a palavra pelo que ela diz e não pelo que o locutor quer apresentar com ela. Então, certamente diria o tolo: “propriedade privada é tão somente o direito do cidadão de fazer o Estado e seus semelhantes respeitarem o acervo de bens que compõem seu patrimônio”. Pela palavra, e tão somente pela palavra, a propriedade privada é tão somente esse direito de um ser humano “ter a coisa”. Direito que existe em ambos os modelos.

No entanto não é de ter coisas, que vive o capitalista. Capitalismo só é o que é, porque além do direito que o capitalista tem sobre a coisa, ele tem alguns outros. Adam Smith nota que:

[…] momento em que o patrimônio ou capital se acumulou nas mãos de pessoas particulares, algumas delas naturalmente empregarão esse capital para contratar pessoas laboriosas, fornecendo-lhes matérias-primas e subsistência a fim de auferir lucro com a venda do trabalho dessas pessoas ou com aquilo que este trabalho acrescenta ao valor desses materiais. Ao trocar-se o produto acabado por dinheiro ou por trabalho, ou por outros bens, além do que pode ser suficiente para pagar o preço dos materiais e os salários dos trabalhadores, deverá resultar algo para pagar os lucros do empresário, pelo seu trabalho e pelo risco que ele assume ao empreender esse negócio. Nesse caso, o valor que os trabalhadores acrescentam aos materiais desdobra-se, pois, em duas partes ou componentes, sendo que a primeira paga os salários dos trabalhadores, e a outra, os lucros do empresário, por todo o capital e os salários que ele adianta no negócio. (SMITH, Adam; 1996, pág. 102)

E também nota que:

[…] não poderia ter interesse algum em empenhar esses bens, se não esperasse da venda do trabalho de seus operários algo mais do que seria o suficiente para restituir-lhe o estoque, patrimônio ou capital investido; por outro lado, o empresário não poderia ter interesse algum em empregar um patrimônio maior, em lugar de um menor, caso seus lucros não tivessem alguma proporção com a extensão do patrimônio investido.(SMITH, Adam; 1996, pág. 102)

Dessas duas passagens, podemos concluir que o capitalismo não é a simples detenção dos bens, mas o regime onde uma pessoa tem direito aos frutos do próprio patrimônio, como se “frutificar” fosse uma característica inerente a toda coisa que torna-se patrimônio de alguém. É possível que um fazendeiro, ou um simples dono de uma chácara perceba os frutos do pé de laranja que tenha no fundo do quintal e o venda. Isso é perfeitamente normal, porque um pé de laranja, de fato frutifica tão somente por ser um pé de laranja. Ao contrário, se deixarmos um punhado de variados metais, borracha, espuma e plástico no quintal da casa do proprietário, nem após 3 safras de laranja, teremos um carro montado. O proprietário então, depende de um outro fator para fazer esse punhado desorganizado de materiais tornar-se um bem de alto valor econômico. Ele precisa de alguém que trabalhe esses materiais.

Durante a história, houveram diferentes regimes que visavam, de formas distintas disponibilizar uma quantidade de mão de obra, disponível aos membros da elite. Ou seja, diferentes categorias de escravos que produziam toda a riqueza para uma elite. Em regimes escravocratas, a frutificação do patrimônio se dava porque o próprio patrimônio tinha a habilidade de trabalhar, afinal os escravos eram parte do próprio patrimônio. Em uma sociedade capitalista, a situação é invertida. Ao invés de ter o direito sobre o trabalho do escravo, o capitalista tem o direito sobre o trabalho de qualquer um que trabalhe em bem dele próprio. Então a ficção de que tudo é passível de “frutificar como uma árvore frutífera” é uma ficção social necessária a manutenção desse direito, que é, como mostrou Adam Smith, o principal elemento que configura o capitalista.

Numa perspectiva mutualista, essa ficção é tomada como um absurdo. O único que tem o direito ao “fruto da coisa” é o elemento humano que a fez “frutificar“. Por outro lado, considerando o que o próprio Smith disse, se essa ficção morre e se o trabalho agrega direitos sobre a coisa, o capitalismo se perde, pois perde-se a tão preciosa liberdade do capitalista de “administrar o bem” como lhe interessar. E é claro, faz a operação comercial ficar pouco ou nada competitiva. Acontece que quanto mais trabalhadores do meio de produção puderem participar nos ganhos, tão menor será o direito do capitalista de perceber, sozinho, os “frutos” dos meios de produção.

SMITH, Adam; A riqueza das nações: investigação sobre sua natureza e suas causas; São Paulo: Nova Cultural, 1996;